Existe uma versão de mim que habita meus pensamentos que é corajosa, independente, calma. Que dá respostas certeiras e com convicção toda vez. Que ouve com atenção e se faz presente em todos os cenários.
Mas essa não é uma imagem real. Aliás, não é nem muito realista.
Uma outra versão se rende à timidez com frequência. Escolhe mal as palavras, escolhe mal o momento de falar, hesita demais para escolher. Repensa decisões e questiona se usou os critérios adequados na avaliação. Questiona qual caminho devia ter seguido.
Mas se o que imaginei como a “melhor versão de mim” é uma fantasia, a pior versão também o é. Nesse multiverso de “eus”, nenhuma imagem que eu fizer de mim é precisa - até porque cada hora, uso um filtro diferente e acabo mais crítica ou mais acolhedora comigo mesma.

Aliás, quem disse que essas características são boas ou ruins?
São justificativas que encontrei para explicar por que algo não ocorreu como eu imaginei. Foi porque não fui corajosa. Ou porque falei a coisa errada. Quando eu fizer o curso que estou querendo no momento, aí sim, as coisas vão funcionar como eu imaginei.
Como gosto de aplicar técnicas de narrativa à minha vida, lembrei das ferramentas de construção de personagem. Um recurso como é definir qual é a “falsa crença de si” que serve ao enredo. Todo mundo mente para si mesmo sobre algo.
São crenças como:
Quando eu for famoso, todos os meus problemas vão se resolver
…e meu pai vai voltar para casa e gostar de mim. É o que parece pensar a versão chimpanzé do Robbie Williams em Better Man (dir. Michael Gracey. Deve chegar ao streaming ainda em abril). Mas a gente sabe que não existe resolução fácil na vida, mesmo para uma celebridade.
Essa é uma cinebiografia incrivelmente honesta narrada pelo próprio Robbie, que não esconde que ele também se acha arrogante e inseguro. A sensação de não-pertencimento é concreta, materializada em uma figura de CGI. Mas a estranheza é passageira e a energia das músicas que fizeram do Robbie Williams um dos cantores mais famosos do Reino Unido deixa as cenas musicais enebriantes. Biografias que tentam abordar uma vida inteira sempre caem em simplificações, na minha opinião, mas Better Man é um filme que surpreende - e que merecia ter tido muito mais visibilidade.Eu nunca vou superar essa dor
…mas dá para aprender a viver com ela? Lidar com o luto é o tema óbvio de Falando a Real (disponível na AppleTV+). Mas há muitos lutos e muitas dores que a gente acha que vão dominar nossa vida - e o dilema é justamente se isso vai ou não acontecer - ou se vamos deixar isso acontecer.
A primeira temporada é mais charmosa, mas a segunda traz desafios mais complexos. Além disso, é interessante observar uma mesma crença falsa sendo abordada de uma forma diferente por cada personagem.Estou fazendo isso para proteger uma outra pessoa
…quando, muitas vezes, a gente tá tentando é proteger a si mesmo. Pelo menos, parece ser o caso do Joel, de The Last of Us (HBO, novos episódios da segunda temporada aos domingos).
Eu amo a primeira temporada e queria muito assistir a alguém jogando o jogo (porque eu mesma não sei se conseguiria chegar até o fime não tenho um PS). Sim, é história de zumbi. Mas é muito mais sobre o que nos faz humanos.
No roteiro, a relação é mais direta: o final da história depende do personagem superar a falsa crença de si ou sucumbir a ela1. Nas nossas vidas, é um pouco mais difícil. A gente é capaz de adaptar a mentira para seguir acreditando nela. Mas, como ouvi de uma psicóloga, basta uma exceção para reconhecer uma falsa regra.

Resenhas que cabem em um cartão-postal
Além do filme e das séries citadas acima, não assisti muita coisa. Passar muito tempo decupando vídeos às vezes me deixa avessa a telas (uma consequência péssima para quem trabalha com audiovisual, eu sei).
Assisti Vitória (dir. Andrucha Waddington, ainda nos cinemas, mas provavelmente em breve na Globoplay) e é sempre um privilégio ver Fernanda Montenegro em cena. É um filme intenso, que quase parece fictício demais para ser baseado em fatos reais (e isso é tanto um elogio quanto uma crítica ao roteiro). Saí do cinema melancólica, mas também pensando em quantas histórias poderiam sumir se não ganhassem registro em livros, filmes e séries.
Ritmo é um dos elementos mais difíceis de se construir em um filme. E Entre Montanhas (AppleTV+) é mais um exemplo disso. O longa entretém quem gosta de ação e de ficção científica. Mas algumas partes são melhor construídas - como o passado dos personagens - e outras acontecem de forma acelerada - como o romance. Se eu pudesse escolher, faria o caminho desse filme ser o oposto de The Last of Us: começar como ficção, e se tornar um excelente videogame. Talvez assim, a gente tivesse um pouco mais de tempo de se envolver com os personagens antes de ter que torcer por eles.
Quem não consegue
resolver um embroglio de cadastro para conseguir ativar a Max eassistir a The Pitt (Max), se contenta com Pulso (Netflix). A série é melhor para quem busca algo despretencioso do que para quem curte dramas que se passam em hospitais. Alguns personagens são bastante carismáticos, mas pouco explorados ao lado de protagonistas pouco interessantes. Cada episódio da série é um dia de plantão em um hospital de emergências na Flórida, com casos médicos até que curiosos, mas com um conflito amoroso central desnecessário. É uma das séries que se beneficiaria das saudosas temporadas de 22 episódios, com construção mais lenta das relações e dos conflitos.
Tendo dito isso, quero muito assistir The Pitt. De tudo que li sobre a série, e com todo o amor que eu tenho por E.R. (também no Max), já imagino que vale o hype.
Estou redescobrindo ouvir discos de vinil em um apartamento que ainda não tem uma televisão. E estou em busca de recomendações de livros! Quem puder indicar algum nos comentários vai me fazer muito feliz.
Deixo essa montagem musical direto de Better Man como trilha para essa edição.
Até a próxima!
- Rachel.
A relação entre enredo e falsa crença do protagonista apareceu em diferentes aulas e workshops que fiz. Mas está também em Creating Character Arcs, de K.M. Weiland, que é um dos livros de teoria sobre roteiro que eu mais grifei até hoje.
Rach, eu não sei muito do seu gosto literário, mas aqui vão duas dicas de livro que eu acredito serem à prova de erros: The Secret History e Tomorrow, Tomorrow and Tomorrow.